sábado, 24 de janeiro de 2009

Campo Grande e seu poema de Protesto e Graditão

Campo Grande deixou de ser provinciana
e se tornou uma dessas mulheres
de costumes e hábitos doentis...

Não usa mais saias cumpridas
a camisa quadriculada
nem se banha mais nos rios.

Agora, anda com saias curtas,
com o ar despudorado, vulgar,
de nariz empinado e o semblante hostil:
ó, Morena, cadê a tua vergonha, outrora tão sadio?

Naquele tempo ter vergonha era um jogo sensual
que enlouquecia qualquer homem.
O pau endurecia mais.
As poesias eram feitas para as noites de luar, enaltecia.
Já hoje,
com todas as tuas modernidades e sofisticações
me faz brochar em cada motel que entro na cidade,
e a perguntar:
onde estão as cachoeiras,
o cheiro pastoril?
Onde está a tua vergonha, oh Morena,
em esconder o seio juvenil?

Campo Grande reclama,
coloca os sapatos, a roupae se levanta: para onde, Morena, para onde?
Responde que para os grandes centros urbanos,
para os pólos industriais,
para as boîtes
onde a música eletrônica dos Estados Unidos impera.

Toma drink’s, red bull’s, exctâse;
viaja com a iluminação aleatória, alucinante,
e caça homens que dão a vida e o sangue em troca do sucesso financeiro.

Depois, vai para um motel,
transa a noite inteira,
não usa preservativos,
e pela manhã vai embora sem ao menos saber o nome do homem,
oh, meu Deus, o nome do homem!

De saia justa, o olhar sério e cabeça erguida,
pára nos cruzamentos,
espera o sinal vermelho,
e atravessa a faixa de pedestres com passos calculados,
como se estivesse nas passarelas do mundo da moda...

O estrangeiro te olha, pergunta o valor, e te compra:
você se vende,
jura fidelidade,
e quando menos espera,
exibe o corpo nas esquinas da 13 e da 14 de Maio,
a uma quadra da Afonso Pena...

Por que, Morena, por que?
Responde que não é mais como a avó,
que quando jovem saciava a peonada nos cabarése os homens distintos nas casas suspeitas.
Diz que não cheira mais a pó,
que não é mais uma vila qualquer,
que agora é pavimentada,
saneamentada como as grandes capitais,
e mais bonita a cada dia que passa...

Ó Morena, de fato
seus braços são bonitos como o asfalto da Fernando Correia!
Seus seios são belos como as casas do Jardim dos Estados!
E o seu sorriso é mais lindo que o pôr-do-sol na praça das Araras...
Mas o seu ânus, ó Morena, é feio
e mais feio é o que dele sai:
o córrego Prosa,
as figuras obscenas na escuridão da Costa e Silva,
as decisões tomadas por certos corruptos no Parque dos Poderes,
a morte de muitos infelizes nos corredores da Santa Casa.

É feio como as crianças descalças nas ruas das favelas,
com a barriga d’ água à mostra.

É feio como o desemprego para os formados na UFMS,
o salário baixo para os professores da Rede Pública de Ensino,
e às suas longas jornadas de estresse e depressão...

Violenta e feia, você se apossa dos bandidos e marginais e diz nas câmeras de tevê:
“Nada a declarar, senhor!”
E uma vez livre, volta para o seu campo de ação...

E lhe pergunto: era este o teu sonho?
Sonhava com isto quando chamaste o mundo todo para ti?
Sonho ou não, vieram para cá os mineiros,
os paraguaios, os árabes, os japoneses, e até os alemães!
Sonho ou não,
em 1918, foste elevada à categoria de cidade,
deixou de ser um campo de faroeste,
de homens e mulheres armadas de 44,
para finalmente se tornar a capital de nosso Estado em 1997.

Era este o seu sonho, ser o que és hoje em dia,
quando todas estas coisas sucederam?

É certo que a idéia de progresso sempre esteve presente em ti.
Não foi à toa, em vão, que surgiu a necessidade de uma ferrovia,
e uma estação no estilo inglês, ó Morena, no estilo inglês!
Para fazer de Campo Grande um centro,
uma passagem,
um cartão-postal de desenvolvimento e urbanização.
Queria dar a mão a São Paulo,
unir Paraguai com o Brasil,
e casar àquele que briga de faca com àquele que luta armado de fuzil...
Queria chamar a atenção dos industriais, dos empresários,
dos homens que lhes pudesse trazer roupas inglesas,
perfumes franceses,
e anéis de brilhantes...

Era isto o que queria, como sempre quis e ainda quer!
E por que, Campo Grande, por que?
Por que esta necessidade de ostentar?

Ao construir o seu primeiro colégio,
mandou vir padres para ensinar a fé cristã,
a fim de formar homens que lutassem primeiro pela justiça
e depois pela vaidade de luxo.
E nada melhor que fosse ao lado da Estação Inglesa!
E principalmente: que se parecesse com o colégio Dom Pedro II!
Mas, na prática, o que se viu foi o nascimento,
o grande nascimento da desigualdade estudantil:
do lado de dentro,
meninos e meninas vestidas de veludo e cetim;
do lado de fora,
a tristeza das crianças pobres que não podiam entrar.

E eu repito: de onde vens, ó Morena,
essa necessidade de ostentar?
Até quando darás mais atenção ao progresso que à Salvação
a salvação dos famintos
daqueles que vivem do lixo
das migalhas que os grandes deixam cairno momento de partir o bolo?
Até quando, ó Morena?
Não te condeno,
nem te crucifico,
acho justo o progresso,
mas precisa esquecer dos famintos?

Veja teus pastos.
Pois eu digo que nem Salomão
no auge de sua glória
teve tanto gado assim!
Olhe
repare
e veja
o quanto teu salto é alto,
e tome cuidado para não caíres...

Ó Morena, olhe bem para ti!
Aprenda contigo mesmo,
E te converta!
Porque, ó Morena,
se a sua idéia fixa pelo progresso te faz prostituir,
o mesmo não ocorre quando você luta pela sua sobrevivênciae por sua identidade....
É quando você se torna bela, única, diferente,– é quando você alcança a Redenção.

É quando me faço esquecer dos números das estatísticas,
dos sensos,
dos anais de sua História Política,
e me deixo fascinar por teus encantos.

E então,
Pelas ruas da tua cidade, ó Morena,
Eu saio em busca do meu poema,
E do meu canto.

E te vejo vestida de boiadeira,
dançando e bailando nos Rachos e nos Galpões da cidade:
nas vaneiras e nos vaneirões é gaúcha,
nas polcas e nos chamamés é paraguaia.
Nos forrós é nordestina,
e no grito do peão é hê, Morena...

E te vejo pantaneira,
tomando tereré na rodas de amigos
em plena segunda-feira!

Pantaneira ainda,
nos finais de semana toma cerveja o dia inteiro,
e se consome no churrasco e na pinga,
em baixo dos pés-de-cedro
ao som da viola e da sanfona sanfoneira.
Eita, Campo Grande brasileira!
Dança e dança, gruda e gira,
e rebola,
e canta,
e briga,
e depois pede desculpas às mulheres,
que sempre são mães
e são tias,
que não fossem por elas
não tinha almoço
nem haveria sobremesa
nem ambiente familiar.

Mas Campo Grande não é só isso,
e ser da região é também ser estrangeira.

Durante a semana, finge ser árabe,
faz comércio, vira mascate,
vende até o que não tem;
para, na hora de gastar, fazer como faz o brasileiro:
“e mande as esfirras,
e traga os quibes, as kaftas, o pão sírio,
babaganuche, homus e coalhada seca...
Cadê o meu arak, filho?
Assim o arguile perde a graça...
E a cerveja?
Me trás aquele dançarino, metido a sweik,
Que eu danço a dança do ventre para ele...
A conta?
Tudo isto?
Brasileira?
Olhe aqui, seu turco!
Libanês?
Que seja! Se você gosta de briga, pode vir!
Abaixe esses preços!
Me dê desconto se não nunca mais eu volto,
e te difamo,
te calunio,
porque também sou fofoqueira!
Chamushka!
Outra hora, coloca o seu kimone, usa rashie vira japonesa.
Se comporta timidamente,
Olha com os olhos desconfiados,
E trabalha entre silêncios e risinhos.
Faz yakimeshi, sobá, pastel, espetinhoe vende na feira ao lado das frutas, das verduras e legumes...
E se aí não está, usando jalecos e aventais,
Se mete nos hospitais nas funções de médicas e enfermeiras.

Ó Morena,
Como você fica meiga
Quando se faz de italiana!
Com as cores brancas, verdes e vermelhas
Cobre de toalhas as suas mesas
E serve as massas e vinho de primeira!
Os canelones, as pizzas, e as lasanhassão feitas com a mesma façanha
que o Scherzo.

Oh, Morena,
Quando se vestes de branco,
e se enche de colares de seus guias
eu me torno um baiano,
e entro na ginga.
Nos terreiros eu te vejo dançando,
rodando a saia baiana,
dando passos,
fumando charutos
e marcando ponto.

E uma hora tu se chama Pomba-Gira,
outra hora, leva o nome de cigana,
quando aconselhas é preta-velha,
quando amas é Aruanda.
E nos pontos de fogo fecho meu corpo
em casa tomo banho de descarrego,
de noite tenho você na cama
e de dia tenho ciúmes o tempo inteiro...

Por ti, Morena baiana,
Entro na roda de capoeira,
Gingo ao som do birimbal
E dou um martelo,
E um macaco,
E uma benção,
Giro o pião e dou um mortal.

Depois,
com o som cada vez mais rápido,
sigo o quebra-gereba
e bato:
ton-tim-tim-ton-don-don-tim-tim-ton
-ton-tim-tim-tom-don-don
tin-tin-ton
Ton-tin-tin-ton
Ton-tin-tin-ton
Ton-tin-tin-ton-don-don
Tin-tin-tom:“Eu não sou daqui, marinheiro sou!”

Fora da tua zona de prostituição,
Tu és bela como o Mercadão Municipal
e os pacús, as piraputangas e os dourados vendidos ali.

É mais colorida que o seu pitoresco arsenal de pimentas,
verduras, legumes, ervas mates e medicinais.
É mais gostosa que os queijos caipiras, as mussarelas de bufulas,
O pastel e as chipas.
É mais excitante que o sukiaki.

Olhe, e aprenda com os vendedores no camelódromo:
podem até vender produtos do Paraguai,
mas fazem isso com dignidade,
acordam cedo e para cada passante faz o convite:
vai uma bolsa, minha senhora?
Vai um boné, garoto?
Computador?
E vendem calcinhas, sutiã, blusas e calça jeans.
Vendem guarda-chuvas, e vendem relógios
E semi-jóias.
E os pobres que admitem ser pobres se maravilham,
E os pobres que não se dizem pobres compram e se escondem,
E os ricos que são espertos compram e saem felizes da vida...

Veja e aprende, Campo Grande, contigo mesma...

Glauber da Rocha

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